quarta-feira

Fin Departure - a mare e gratis (sem acentos) ou o pinga-amor

FIN DEPARTURE
A MARE E GRATIS (SEM ACENTOS)
ou O PINGA-AMOR

Concepção: João Fernandes, Júlio Mesquita, Pedro Manuel, Ricardo Guerreiro, Sara Franqueira Interpretação: João Fernandes, Júlio Mesquita, Pedro Manuel, Ricardo Guerreiro, Sara Franqueira, Carina Silva, Vanda Robalo, Sara Santinho, Helena Cruz, Patrocínia Cristóvão Banda: Zingarelho Cósmico Operação Técnica: Nuno Apoios: Clube Naval Barreirense, AMAC, Câmara Municipal do Barreiro, SIRB Os Penicheiros, Hey Pachuco, Jornal do Barreiro, Jornal O Rio, Rádio Popular na Praia do Clube Naval Barreirense



1 – Ofertas
Cada espectador recebe na mão esquerda uma manta para o vento ribeirinho, frio da noite. Na mão direita recebem um saco com um tomate. Mole, para não lhe chamar podre e bolorento.


(Na entrada de o amor e gratis (sem acentos) os espectadores recebiam uma moeda de 0,01 € juntamente com o bilhete. Aqui também havia uma oferta, já viram?)

Didascália:
Uma praia.
É noite.
Sobre a areia e até dentro de água estão presas dezenas de balões amarelos que se vergam ao vento. Vêem-se cadeiras espalhas pelo areal. As estacas que em dias de verão suportam os toldos azuis estão atravessadas de fios e, no meio, vemos um toucador de senhora com o espelho virado para o público. A ondulação é suave, excepto quando passa um barco ao fundo. Minutos depois a borda de água agita-se mas ainda assim é só o eco distante de um sulco aberto a meio do rio. Sopra a nortada. Está frio. Mesmo que o espectáculo seja feito num teatro tem que estar frio. E soprar o vento norte.

2 – Festa!
Enquanto o público se senta na plateia inclinada da rampa de acesso dos barcos decorre uma festa na praia, com banda ao vivo. Os actores dançam, vão trocando de lugares, de olhares. Quando o último espectador se senta ouve-se uma música de verão. O ritmo muda, acelera, os convidados entram em delírio, a dança transforma-se em corrida, a presença em urgência, com cada convidado a fazer/ ensaiar tudo aquilo que será feito como um flash-back invertido, uma prolepse. Começar pelo fim, pelo fim de festa.

(Também em primeira frase de o amor e gratis (sem acentos) era: Obrigado por ter vindo. A última cena do espectáculo era um flash-back, uma analepse de todas as cenas que tinham sido feitas. Que engraçado, as coincidências que se dão)


FIM


3 – Homem do Pontão
O fim da música marca o fin de partie, os actores param, cansados, deixam-se cair em cadeiras, pela areia. Um homem resiste à falta de ar e caminha até ao pontão. Ainda na praia cruza com dois bidões onde num está escrito NAGG e noutro NELL. O homem caminha até ao fim do pontão. Fica na proa da praia, com o olhar suspenso sobre a água do rio. Uma mulher atravessa o areal com um ancinho, alisando/ penteando a memória. O poeta lê-se o seu poema (O anjo mudo, de Al Berto).

4 – Pôr-do-sol
As pessoas levantam-se. Baixam os balões até à areia. Uma a uma, vão até ao toucador e tiram um par de óculos escuros. Em fila, colocam-se em frente ao público, esperam por alguém. Por trás deles passa um homem com uma televisão. O homem coloca a televisão em cima de uma cadeira sobre a areia e junta-se ao grupo. Põem os óculos escuros, sentam-se perto do público, virados para a televisão. O homem liga a televisão com um comando. Liga o DVD. A imagem aparece. É a mesma praia mas de dia. Depois, visto de onde se vê, o pôr-do-sol desse dia aparece no ecrã. O grupo contempla o pôr-do-sol na TV. Ouve-se uma ópera até que o sol desapareça no horizonte. Quando o filme acaba, o grupo irrompe em aplausos.



5 – Despedidas
O grupo levanta-se, dispersa-se, cada um abraça um balão e rebenta-o no peito. Agora dirigem-se ao público e despedem-se do público, cada um, um por um: obrigado por ter vindo, espero que tenha sido tão bom para si como foi para nós, obrigadinho, apareça mais vezes, até à próxima, espero que tenha gostado, o espectáculo acabou. A banda larga os instrumentos, estende uma toalha no chão e faz um piquenique alentejano.
Os outros voltam para a praia e deitam-se sobre o areal. Adormecem.

(Curioso, em o amor e gratis (sem acentos) esta era logo a primeira cena, nós íamos ter com cada espectador e apresentávamo-nos com o nome de todos os outros actores menos o nosso. Incrível, estas coisas passam de um espectáculo para outro e nós nem damos conta)


FIM


6 – Exaustão
Passados muitos anos, volta a ouvir-se uma música de verão. Quatro corpos levantam-se, dirigem-se ao público e dizem uma parte da letra da canção, o seu papel. Depois descem a praia, tranquilos, entram na água e banham-se. Agora voltam ao público e repetem a frase. Descem a praia, entram na água e banham-se. Voltam ao público, um pouco mais rápido, e dizem o seu papel. Descem a praia, banham-se na água. Voltam ao público, dizem a frase e correm pra a água, banham-se. Voltam ao público, dizem a frase, vão até à água, molham-se, voltam a subir, frase, correm, água, público (já nem chegam lá), frase, água, banho (o gesto já é outro), areia, água, areia, água, areia, água, areia, água, fim da música, os corpos desistem, exaustos. Os corpos ficam a boiar à tona da água ou inanimados sobre a areia.
Um tempo.
Levantam-se os que estão na água, dirigem-se para um barco. São três corpos para o mesmo barco. Lutam. Lutam na água por um barco que flutua um metro acima do leito e quase se afogam os três. Um deles consegue subir, outro também. O terceiro afasta-se e procura outro barco, mais ao largo. Os outros dois descobrem que o barco está cheio de água. Um barco em-terra com água.

(Lá está, outra vez. No outro espectáculo também havia uma cena de luta. Mas como é que estas coisas acontecem?)

7 - Banho
Duas mulheres levantam-se da areia, vão até à água. Ouve-se o tema Summertime. Aparecem mais duas mulheres por cada uma das outras, ajudam-nas a banharem-se, trazem-nas de volta à areia. Com regadores, cobrem os corpos molhados das duas mulheres com areia (croquete horizontal). Todo o movimento é lento, ritual. Quando as mulheres estão cobertas de areia as outras afastam-se. Entra um homem com dois baldes de água e põem-se à frente das duas mulheres. Lança um balde de água para cima de uma delas, com violência. Lança o outro balde de água para cima da outra, com violência. É o gag. O homem sai. As mulheres agradecem ao público. Saem.

8 – Eco
Um dos homens que está no barco com água sai e vem ter com o público. O que está no barco mais distante levanta-se. Está nu. Fala. Grita. Mas as palavras são levadas pelo vento. Só o homem que está no barco com água as ouve. O homem nu fala e o homem do barco com água repete o que ouviu ao homem que está junto ao público, que repete o que ouviu aos espectadores, mas muito baixinho.
Texto sobre a consciência da festa (Virgínia Woolf)

9 – Toucador
Existe um toucador com um espelho. Está uma mulher sentada ao espelho. Atrás dessa mulher o seu reflexo multiplica-se noutras mulheres, em fila. Ela pensa e ouve-se o que pensa (David-Mourão Ferreira). Os reflexos ecoam os seus pensamentos em saudades. Ela maquilha-se. Os seus reflexos também. Mas cada reflexo parece aumentar a expressão e a maquilhagem.

10 – Dança
Um tango esquisito em torno das cadeiras espalhadas.

11 – Tomatina
Um ritual de passagem para um actor. Ensaio de uma cena. O actor, “Ricardo” para o efeito, ensaia um excerto do texto Fim de Partida/ Fim de Jogo/ Fim de Festa (Samuel Beckett). Dois homens escavam um buraco na areia com pás. Escavam até que o actor, “Ricardo” para o efeito, consiga entrar até à cintura. O actor entra no buraco, é coberto com areia e começa a ensaiar a cena, mas é interrompido pelos outros dois que se afastam e segredam qualquer coisa. Um deles dirige-se ao público e pode para ver os tomates de cada um. Explica que aquele actor, “Ricardo” para o efeito, merece ser vaiado. O público exalta-se com a oportunidade da chacina (antes fossem pedras) e bombardeia o actor com os tomates. Depois, sim, o actor consegue fazer a cena. E é aplaudido.


12 – Balões
Os actores soltam os balões amarelos que são levados pelo vento norte ao som de Volare.

13 – Acenar
Os actores encontram-se no pontão, sentam-se virados para o rio, de costas para a cena, para o público, viram-se para a noite. Despedem-se, acenam para outra cidade na outra margem. A outra cidade retribui com fogo de artifício (no sábado quase que houve pendant com o festival de pirotecnia)


FIM
(não há agradecimentos, não há cá disso, os actores saem)


A banda informa o público que o espectáculo acabou. Pede ao público que saia. Que se despache!

(nós fomos tomar banho e fizemos uma belo petisco de fêveras, entremeadas e vinho tinto, aqui entre nós, porque queríamos ter cozinhado no outro espectáculo)