sexta-feira

Sobre Debaixo I

Publicamos o primeiro testemunho Sobre Debaixo da Cidade nas palavras de Júlio Mesquita.

Podes começar por te virar do avesso.
Isto é.
Posso começar por te perguntar se te podes virar do avesso.
Obrigado. Assim está muito melhor.
Do lado de fora, os órgãos expostos.
Por dentro a pele, palpita, respira. Enche a bolsa de ar e deixa-a a caminhar.
Expira, isso, devagar.
Olhando para dentro o que vês.
Faltam as defesas. Faltam os segredos escondidos debaixo das pedras.
Lembra-te deles. Escolhe uma.
Queres levantá-la, queres ver o que está por baixo.
Devagar, muito devagar para não te esmagar.
Temos de procurar, esgravatar, procurar, tocar. O que sentes. Que cheiro tem. Inspira. Agora vê-te por fora. Grotesco não é. Conta até três. Solta o ar.
Sempre devagar. Tenho tempo. A ansiedade estraga.
Podes agora observar-te do exterior.
O teu melhor eu.
Queres convidá-lo a sair. Levá-lo a ver a erva crescer, delicadamente lambendo o sal.
Ao final da tarde apresenta-lo aos teus pais. Eles vão pedir-lhe que fique para jantar.
Vais exibir as tuas pedras vazias e dançar de alegria.
Chamam-vos para jantar.
Sentas-te à mesa e comes sofregamente. Os teus pais ficam contentes. Tu também.
Posso agora pedir que te vires do avesso.
Mas antes limpa o que tens debaixo das unhas.